segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Cicatrizes! Tão minhas e tão nossas?

Eu sei o que é uma cicatriz porque tenho uma muito grande no corpo. Outras menores. E outras emocionais. Como todos nós.

A cicatriz diz que tudo que foi ruim um dia se foi.

A cicatriz diz para o portador: "Você venceu!"

A cicatriz diz para o observador: "Ele (a) passou por algo ruim!"

A cicatriz diz ao portador e ao observador: "A dor foi grande!"

A cicatriz não deixa esquecer. Pode ter sido ressignificada, superada, mas nunca será esquecida. Fica ali justamente pra isso.

Hoje um amigo de longa data, primeiro assoprou, depois tocou numa das cicatrizes emocionais. Será que dói mais nele do que em mim? Eu ressignifiquei, mas acho que ele que assistiu inativo e só pode assistir não ressignificou. Eu superei, mas acho que meu amigo ainda não. Ou não é isso? O que realmente aconteceu com minha cicatriz? O que ela disse aos amigos comuns do agressor e da vítima? O que minha cicatriz provoca ainda nas pessoas da época em que ela foi causada? Para quê minha cicatriz foi permitida? O que ela deve lhes ensinar? O que ela me ensinou não ensinará a quem não lhe foi "cortada a carne". Ou o que me aconteceu lhes cortou a carne e eu, ensimesmada, não percebi? Será a prova de que realmente somos todos parte de um todo, que o que me acontece, acontece, reverbera no todo? Mas então, meu ressignificar, meu superar, meu curar deveria tê-los curado também. Alguns amigos seriam menos resistentes? Ou nostálgicos? Ou as duas coisas? Depois de onze anos do fato ocorrido, ainda hoje este amigo me perguntou como se fosse no dia seguinte: "O que aconteceu?" Ainda com a mesma surpresa de onze anos atrás, com a mesma indignação, com a mesma decepção de que o que parecia perfeito e eterno não era. Ainda me disse não acreditar. Onze anos depois. Estou estupefata. Todas as decorrências do fato já estão postas e outras hão de vir. O que tudo isso quer dizer? Seremos sempre, o agressor e eu, questionadores, inquietadores, provocadores? Ou o agressor teria dito alguma coisa a esse amigo que ele não me revelou? O que quer que tenha dito, pode reverberar e mudar sutilmente o futuro, mas nunca a história já vivida. O sonho ainda continua vivo nalguns poucos amigos? O da perfeição? O que os amigos ficaram sabendo naquela época, ou souberam depois, ou agora que os faz não conseguir ressignificar?

Fico com a simplicidade, com a obviedade: o agressor foi e é um fraco. Incapaz de dominar seus próprios instintos. Incapaz de fazer suas escolhas. Incapaz de manter suas escolhas feitas  na fragilidade do seguir a correnteza. Incapaz de reconhecer-se. Incapaz de reconsiderar. Ou, simplesmente, tardiamente, fez a escolha que sempre quis. Embora há indícios de que mais uma vez não escolheu.

Meu amigo tocou na pele ressequida da cicatriz, sensível demais, pouco flexível como é natural que seja. O que pretendia meu amigo?

Por um instante, um só, senti o que ele tentava me dizer que sentia.

Mas nada resgatará minha inocência perdida. Nada fará apagar da lembrança. Nada reconstruirá o meu olhar ingênuo. Minha infância foi perdida. Mas ganhei outras coisas: "Olhos de Lince"; uma sede maior ainda, do que a que já existia, pela beleza das coisas; uma sagacidade multiplicada; uma capacidade que se aprimora de trazer à luz o que é verdadeiro; um atrevimento vigoroso de construir Homens; uma coragem  infinita para correr mais riscos que antes na tentativa de descobrir o que há de bom nos Homens e de encontrando, fazê-los assim perceber; uma loucura controlável para pisar a realidade e o futuro, de onde trago a energia e a vitalidade da certeza para o que tem que ser feito hoje; medo também; fragilidade também; desconfiança também; só pra não deixar de ser gente.

Meu amigo! Não troco nada do que sou hoje pelo antes da cicatriz que você fez questão de tocar hoje. Sou melhor. Sou maior. Sou mais. Sou tudo que não seria sem essa cicatriz. Sou para que outros acreditem que podem ser. Sou erro. Sou pecado. Sou imperfeição. Sou miséria. Mas sou também impulsão. Sou compreensão. Sou sabedoria. Sou menos arrogante. Sou menos prepotência. Sou gente. Sou boa. Sou o que posso ser. Sou o que me permitem e me permito ser. Sou, metade eu querendo acertar, e metade de todos os erros da humanidade. Sou o que tenho coragem de aceitar, logo, sou minhas cicatrizes todas, aquela dos 80 pontos cirúrgicos entre externos e internos no tórax e inclusive essa que meu amigo acaba de lembrar.

Cuidarei melhor dos meus amigos e suas cicatrizes, não posso evitá-las, mas posso mostrar-lhes como convivo com as minhas. Um detalhe importante: essa cicatriz não me impede de acreditar que há Homens bons. Outro detalhe importante: sei quando jogam comigo e só entrego o ouro ao bandido se isso me interessa ou se o bandido me interessa...rs. Mas por favor, jogue bem, pra que eu o admire ao menos por isto...rs.