domingo, 26 de junho de 2011

Voltando pra casa



Depois de um vinho tinto, ouvindo uma música - densa, com uma base pulsante de duas notas no piano, ora na escala aguda, ora na média,  acompanhadas por outras notas graves, com o choro das cordas do violoncelo ingressando no corpo da música já em andamento, introduzindo a voz feminina que começa suave e em tom confortável, logo descendo, aparentemente, ao que parece ser o limite de seu registro mais grave, retornando em seguida já embargada, contida, falha, como quem decepcionada lamenta muito, para no momento seguinte puxar o ar entre os dentes como faz quem sente dor e está cansada de sentí-la, invadida pela caixa da percussão que vem atrás dando ares de glória à marcha pesada da angústia enfeitada pelo sopro de um dos metais, na qual depois entra um coro masculino seguido de outro feminino sublimando a tormenta com uma simbólica harmonia, a partir do que tudo cresce ritimado pelo pulso das duas notas que reaparecem e suavizam, com uma notação de ralentando, fazendo parecer que tudo termina bem - volto pra casa.

Assim, no retorno, fixando o olhar em perspectiva na estrada toda iluminada, vejo o que não queria...só luzes artificiais pretenciosas, de pouco alcance, incapazes de mudarem noites em dias, oferecendo apenas um trânsito "evitativo" de colisões. Ora, é preciso maior luminosidade para que sob o efeito prolongado do vinho, eu ouça uma música densa e não sofra suas reações no rítmo dos saltos sanguíneos no interior dos dutos que insistem em funcionar. Ora, é preciso visão de uma grande extensão do horizonte, é preciso visão das cores das coisas, é preciso visão de um futuro belo, quente e bom logo ali pra "evitar" que a água do mar não seja a única a salgar a pele do rosto.

Para não depender da imaginação, a música ouvida há pouco foi esta:

Have to drive, de Amanda Palmer





Fonte:
http://www.youtube.com/watch?v=ea18wSkrK5g

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Antissocial: de comportamento eventual a transtorno


Todos nós convivemos com pessoas mais velhas, aqui ressalto um grupo delas, o grupo das verdadeiramente muito experientes, daquelas que vivem muitas coisas diversas e profundamente, que nao deixam passar coisa alguma em branco, que tudo associam, tudo analisam em busca de conclusões, de sínteses integradoras. Essas constroem sabedoria, sem necessariamente serem diplomadas pela academia. Por essas pessoas sábias é que costumo dizer aos meus pupilos:  "A geração que não respeita, não ouve, não considera, não se curva à geração anterior está fadada ao fracasso".
A sabedoria popular dos mais velhos não diplomados tem algo de tosco para alguns, de óbvio para outros, de tácito para muitos, de instigante para os cientistas, de grandioso para os perspicazes, de admirável para os humildes.

Outro dia busquei informações científicas recentes sobre comportamentos inadequados e difíceis na infância, na adolescência, juventude e vida adulta, afim de melhor identificar e orientar a evitação e/ou tratamento daqueles que estão sob minha responsabilidade.
Visitei o site Scielo (Scientific Eletronic Library Online) - uma biblioteca virtual de publicações de artigos científicos internacional, com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), e nos periódicos da área de Psicologia fiz a busca por "comportamento antissocial", encontrando apenas dois artigos, dos quais comento aqui um deles:
"Estabilidade do comportamento anti-social na transição da infância para a adolescência: uma perspectiva desenvolvimentista"
Obs. O artigo foi publicado em 2005, depois disso veio o novo acordo ortográfico, por isso a mudança na forma de escrever anti-social para antissocial, pelas novas regras do uso do hífen.


Os autores   :
Janaína Pacheco é Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É docente do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil/ Gravataí.
Patrícia Alvarenga é Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É docente da Universidade Federal da Bahia.
Caroline Reppold é Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É docente do Centro Universitário FEEVALE.
César Augusto Piccinini é Psicólogo, Doutor em Psicologia pela University of London. É docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Cláudio Simon Hutz é Pós-doutor pela Arizona State University. É docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.   


Para seu acesso:

O que o artigo faz é trazer as inúmeras pesquisas, muitas norte-americanas sobre o assunto ou periféricas, para estabelecer o "estado da arte" e acabar concluindo o fator desenvolvimentista do comportamento antissocial.

Segue um resumo do artigo, para uma rápida compreensão, mas não deixem de ver o artigo com toda referência das pesquisas.


RESUMO

1.    Introdução
Os problemas comportamentais e emocionais podem ser classificados em
a)    Problemas de externalização (com o ambiente) e;
b)    Problemas de internalização ( com o self)

1.1     Características do comportamento antissocial e/ou problemas de externalização:
- agressividade;
- impulsividade (baixo controle);
- delinquência (roubos);
- desobediência (fugas);
- oposicionismo;
- temperamento exaltado.

1.2     Características dos problemas de internalização:
- depressão;
- ansiedade;
- retraimento social;
- queixas somáticas.

2.    Comportamento antissocial pode desenvolver, compor:
2.1     Transtorno de Conduta (TC):
- Padrão repetitivo e persistente de violação dos direitos básico dos outros ou das normas ou regras sociais importantes apropriadas à idade (DSM-IV, p. 84).
- Agressão, destruição de coisas, furtos, violação às regras.

2.2     Transtorno Desafiador Opositivo (TDO):
- Menos severo do que o Transtorno de Conduta.
- Padrão de comportamento negativista, desafiador, impaciente, vingativo e hostil. Atos de teimosia e desobediência, dificuldade em assumir erros, intenção deliberada para incomodar outras pessoas.
- Discute-se ainda a possibilidade de considerar a agressividade como um marcador para o TOD ou TDO (Transtorno Opositor Desafiante).

2.3     Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA):
- Padrão anti-social inflexível e duradouro ao longo do desenvolvimento.
- Diagnóstico só a partir dos 18 anos e ter apresentado evidências de TC desde antes dos 15 anos.

3.    Associações clínicas
3.1     Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
- Distúrbio do neurodesenvolvimento
- provoca ao portador prejuízos sociais por:
·         Baixa tolerância à frustração e
·         Conflitos nos contextos familiar, acadêmico e ocupacional.

3.1.1     Sua relação com o comportamento antissocial é explicada por duas hipóteses:
a)    Comorbidade entre TDAH e os transtornos que envolvem comportamento antissocial (Transtorno Desafiador Opositivo e Transtorno de Conduta)
b)    TDAH e transtornos que envolvem comportamento antissocial (TDO e TC) compartilham etiologia comum, a saber: interação estabelecida entre uma criança com características de temperamento difícil e cuidadores relativamente não-responsivos.
- Entende-se aqui que o TDAH seria um estágio inicial e o comportamento antissocial, uma manifestação posterior.
·         O que favoreceria a evolução de TDAH para comportamento antissocial seriam práticas educativas e disciplinares ineficazes, ambiente que permitiria a ocorrência de atos antissociais.

4.    O desenvolvimento do comportamento antissocial
- Segundo pesquisadores (citados na referência do artigo) esse padrão é adquirido na infância, aprendido nas interações sociais, particularmente com membros da família e sofre alterações por exigências do ambiente e do próprio desenvolvimento.
- O comportamento antissocial é um padrão de resposta cuja consequência é maximizar gratificações imediatas e, evitar ou neutralizar as exigências do ambiente social.
- O comportamento antissocial pode apresentar-se em:
·         Comportamentos abertos: brigar, desobedecer, xingar e bater.
·         Comportamentos velados: mentir, roubar, fugir de casa, trapacear.
- Indivíduos antissociais utilizam comportamentos aversivos para modelar e manipular as pessoas à sua volta.
- Os membros da família treinam diretamente esse padrão comportamental na criança. Os pais não reforçam positivamente as iniciativas pró-sociais e fracassam no uso de técnicas disciplinares para enfraquecer comportamentos desviantes.
- Além disso, usam de disciplina severa e inconsistente, com pouco envolvimento parental e pouco monitoramento e supervisão do comportamento da criança.
- Em algumas ocasiões ainda o comportamento antissocial é reforçado positivamente, através de atenção ou aprovação, mas principalmente é mantido pelo reforço negativo.
- A criança se utiliza de comportamentos aversivos para interromper a solicitação ou a exigência de um outro membro da família.
- A aprendizagem do comportamento antissocial ocorreria paralelamente a um déficit na aquisição de habilidades pró-sociais.
- Os comportamentos aversivos da infância, tais como: chorar, gritar, implicar, ameaçar e ocasionalmente bater podem evoluir para os comportamentos antissociais tais como: brigar, roubar, assaltar e usar drogas. Os comportamentos antissociais da infância podem evoluir para comportamentos deliquentes mais tarde. A delinquência, então, é o agravamento de um padrão antissocial que inicia na infância.

5.    Estabilidade do comportamento antissocial
- O que contribui para a manutenção e escalada do comportamento antissocial?
Segundo o Modelo de Coerção proposta pelos pesquisadores Patterson e colaboradores (1992):
1º A criança aprende o comportamento antissocial com os pais por dois fatores quando seu comportamento aversivo (gritar, chorar, bater):
a)    Consegue evitar exigências dos pais; e
b)    Torna difícil seu monitoramento e os pais acabam permitindo que ela fique mais tempo fora de casa, sem supervisão.
2º A criança apresenta dificuldades de aprendizagem e fracasso acadêmico.
3º A criança liga-se a grupos de pares que também apresentam problemas de comportamento.
            Obs. O comportamento antissocial pode ocorrer mesmo em indivíduos que não pertençam a um grupo de pares antissociais.
            - Crianças e adolescentes antissociais frequentemente tornam-se adultos com dificuldade de permanecer em um emprego e em um casamento.
            - Fatores que favorecem a continuidade ou agravamento dos comportamentos antissociais:
                        1. Hereditariedade (Pelo menos um dos pais manifesta comportamento antissocial)
                        2. Intensidade do comportamento
                        3. Variedade dos atos antissociais
                        4. Idade de início desse padrão na fase pré-escolar
                        5. Os atos antissociais ocorrem em mais de um ambiente
            - Idade de início e persistência dos atos antissociais são preditores de:
·         Severidade dos comportamentos antissociais
·         Isolamento social
·         Evasão escolar
·         Uso de drogas
- Quando o comportamento antissocial aparece na fase pré-escolar como comportamento oposicionista e desafiador.
- Quando há deficiências neuropsicológicas (impulsividade e déficit de atenção) e riscos sociais e familiares (violência cultural, padrões de socialização parental e situação sócio-econômica).

6.    Estabilidade do comportamento antissocial da infância para a adolescência: algumas evidências empíricas
- Os problemas de externalização e comportamentos antissociais aparecem mais na infância do que os de internalização e tendem a evoluírem para casos graves na adolescência e vida adulta.
- O padrão antissocial é mais comum no sexo masculino.
- As primeiras manifestações podem ser detectadas aproximadamente aos 18 meses (agredir os pais e destruir objetos).
- Embora ocorram profundas modificações na forma dos comportamentos coercitivos e antissociais na transição da infância para a adolescência, sua função permanece a mesma: maximizar gratificações e eliminar exigências dos adultos.
- Jovens de 18 anos envolvidos com bebida, cigarro, drogas e promiscuidade, aos 14 anos estiveram envolvidos com roubo e outros delitos; dos 12 aos 14 anos mostraram comportamento agressivo e antes dos 12 mentiram.
- O comportamento antissocial tende a apresentar-se como um padrão estável entre infância e adolescência, dadas determinadas condições ou mesmo como agravante.

7.    Considerações finais
- O ambiente social do indivíduo pode gerar o comportamento antissocial, sua manutenção e agravamento.
- O comportamento antissocial está presente nos diversos transtornos emocionais:
TDO – Transtorno Desafiador Opositivo
TC – Transtorno de Conduta
TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
TPA – Transtorno de Personalidade antissocial
- O comportamento antissocial tem a função de:
·         Maximizar as gratificações
·         Reduzir ou eliminar as exigências dos adultos
- A trajetória do comportamento antissocial pode explicar a progressão do TDO para TC, para TPA.
- As pesquisas devem contribuir para implementar programas de prevenção e intervenção que minimizem o impacto desses problemas sobre o desenvolvimento e que evitem a continuidade e escalada do comportamento antissocial da infância até a vida adulta.


É bonito perceber a sabedoria popular ratificada pela ciência.

Um exemplo: "É de pequenino que se torce o pepino".

Você lembrou de outro ditado popular enquanto lia o artigo? Comente.

domingo, 19 de junho de 2011

Um amante



Um amante estende o tapete vermelho pra sua amada passar. Ela é especial pra ele.

Ele não quer que ela se machuque. É dócil, suave até quando é ardente. Um amante é cuidadoso, evita os gestos abruptos mesmo quando é voraz.

Um amante dá segurança a sua amada, oferece chão firme, dá-lhe garantias de que não correrá riscos, exceto o de sentir fortes, grandes e agradáveis emoções.

Um amante percebe a amada retraída e lhe estende a mão, sempre maior, mais forte e mais quente que a dela e ao receber o voto de confiança - quando ela repousa sua mão sobre a dele - traz pra junto de si a mão tímida, trêmula, fria, para que o calor da sua alma, do seu corpo, das suas intenções a façam respirar melhor, pulsar de novo, sorrir aliviada e pensar "ele não é só um lobo, ele não é um lobo qualquer", isto porque ela sabe que ele é um lobo, ela quer o lobo, mas ela quer que ele venha devagar.

Um amante não brinca com coisa séria, respeita profundamente os sentimentos da amada. Um amante é um homem bom.

Um amante protege seu amor protegendo a amada e protegendo-se, sempre nesta ordem.

Um amante se faz presente nas pequenas e nas grandes coisas, nos pequenos lugares ou ainda no espaço incalculável do pensamento da amada, que ora é pontual - sobre fatos vividos e guardados na memória - e ora é dilatado até as infinitas possibilidades de como ela pode retribuir tanto desejo, tanto cuidado, tanta segurança.

Um amante não rouba o que não quer lhe ser entregue. Um amante tateia e descobre o mapa que leva à intimidade com sua amada. Um amante reescreve a legenda desse mapa criando caminhos novos, melhores, nem mais curtos, nem mais longos, apenas os seus caminhos pelos quais ela vai preferir ser visitada, encontrada, contemplada, absorvida.

Um amante sabe a hora de correr e se adiantar, de chegar e deslizar, de prender e cortejar, de surpreender e soltar.

Um amante sabe desfrutar da retribuição de sua amada, entregar-se aos seus cuidados carinhosos até que as terminações nervosas lhe propiciem espasmos e a sensível perspicácia lhe permita ficar surpreso e admirar-se.

Um amante semeia, planta e colhe da amada que se entrega, cresce e floresce simplesmente para cumprirem seu ciclo natural de renovação. Um amante nutre sua amada regradamente com a seiva do seu desejo, com o caldo do seu cuidado e com a luz do seu olhar.

Um amante anda por perto, atento, disposto. Um amante reconhece quando por contingências se fez ausente e sobejamente em expiação se oferece caindo aos pés de sua amada.

Um amante põe fogo e acalma. Um amante aquece o corpo e a alma. Um amante a vida salva.

Um amante é quem encontrou-se com Deus e inflado do Seu amor não se contém, vivendo a transbordar para que a eleita prove um pouquinho.

Um amante é filho de peixe e como tal, peixinho é, digo, é filho de Deus amante e como tal, deusinho amante é.

Um amante é um guerreiro condecorado, um vitorioso premiado, um líder aclamado, um deus amado das entranhas aos poros de sua amada. Um amante sempre será lembrado, enaltecido, terá seu nome bordado com fios de ouro no tecido da história da sua amada. Um amante desse quilate é um fiel depositário dos talentos recebidos.

Um amante se destaca dos convivas porque seus olhos têm o brilho da alma flamante, sua pele exala o aroma da plenitude confortante e seus movimentos expressam a dança da unidade estimulante.

Um amante é um presente para uma mulher que inevitavelmente se desdobrará para agradá-lo, para honrá-lo, para amá-lo além da sua medida. Um amante é bênção a ser pedida, graça concedida por ordem divina.

Um amante todas merecem, mas é preciso querer, reconhecer, alimentar e não sobrecarregar.

Um amante só existe nos livros, nos filmes, nas músicas, nas poesias, nos palcos, nas coreografias, nas esculturas, nas pinturas, nos desenhos, nas fotografias, porque antes existe no dia-a-dia.

domingo, 12 de junho de 2011

Avaliação

AVALIAÇÃO: UMA PRERROGATIVA DO FAZER CRESCER
SOB A ÉGIDE DA LIBERDADE DO QUERER

Ms. M. R. H.

            Há mais de quinze anos, eu estava numa sala diante de um homem com autoridade, não aquela outorgada por outrem, por um diploma ou uma posição, isso tudo até existia, mas a autoridade vinha dele, o resto era moldura, adorno, detalhe, nada que valesse mais que a “obra” – a sua pessoa.

            Professorava sem ser professor e ainda o faz, com a surpreendente atitude de ouvir mais do que falar, e quando fala, mais pergunta suscitando as respostas escondidas em nós mesmos do que respondendo nossas perguntas – isto nos faz lembrar com certeza da “maiêutica” de Sócrates, do “ensinar a pescar” de Jesus, da “psicanálise” de Freud, e mais recentemente, da dialogicidade de Paulo Freire, assim como nos remete à etimologia da palavra educação, que vem do latim “educere” – tirar de dentro.

            Não temer o que vem do outro, o que o outro é, convidar e permitir que o outro se manifeste sem se colocar indiferente a ele, é caminhar junto, é reconhecer a existência do outro e, implicitamente, comprometer-se com o caminho do outro, com seu crescimento.

            É senso comum que os professores desejam e agem para gerar o crescimento de seus alunos, mas sabemos o quanto isto está carregado de eufemismo, pois, nem todos e, tampouco, por todo o tempo, dão conta desta tão pretensiosa missão. Além disto, “fazer crescer” para o professor, pode muitas vezes significar unicamente tornar o aluno uma cópia aproximada de si mesmo, sem considerar a riqueza das diferenças e as possibilidades de crescimento mútuo.

            Estamos falando de crescer e fazer crescer, o que inclui a prerrogativa da avaliação, pois, só podemos decidir ir adiante se – sabendo onde queremos ir, quais caminhos nos permitem chegar e, como podemos fazer esse caminho – verificamos ao longo do percurso o que nos ajuda e o que nos atrapalha.

Se o professor desejar mesmo fazer crescer seus alunos, utilizar-se-á da avaliação como meio, mas que tenha antes consciência de que a avaliação deve ser passível, ela mesma, de avaliação, além do que, ela deve acontecer internamente e externamente, é o que DEMO (1995) vai nomear de “lógica e democracia da avaliação”.

Por “lógica da avaliação” entende-se que, a exemplo da ciência moderna que se constrói e constrói conhecimento por meio de questionamento sistemático, crítico e criativo de si e do objeto de estudo, com vistas à intervenção, também a avaliação se constrói e produz crescimento se assim o fizer, ou seja, sujeitar-se a questionamentos, e aqui é preciso acrescentar a figura do avaliador, no caso da escola, o professor, que antes de avaliar o aluno, deve não só avaliar-se, mas deixar-se ser avaliado por outrem.

Por “democracia da avaliação” compreende-se que, a avaliação precisa ser educativa, motivadora, desafiadora e não instrumento de exclusão, de comprometimento da auto-estima e geradora de fracasso escolar.  Suas características são: transparência de critérios, ou seja, os avaliados precisam saber o quê, como e quando serão avaliados; a possibilidade da avaliação ser refeita, caso os resultados estejam aquém do esperado; servir de elo entre avaliador e avaliado, aproximando-os pelo diálogo sobre o momento em questão; propiciar ao avaliado a comparação consigo mesmo, a autopercepção do que é capaz até o momento; guiar-se pela ética do mérito, a qual evidencia a competência conquistada e não apenas preferências e privilégios do avaliador para com o avaliado.

Com estes conceitos, voltemos ao personagem inicial, o homem que professorava sem ser professor, que fazia crescer e que para isso avaliava.  Cabe ressaltar que sua avaliação se dava sobre “ações” do sujeito e não sobre o “ser” do sujeito, o que é muito diferente, pois, quem se acha competente para julgar o “ser” de outrem? O “fazer” já é uma realidade bastante complexa que envolve a subjetividade individual e a subjetividade social do sujeito da ação, no espaço-tempo em que se encontra, quem dirá o “ser”, que nunca está pronto e acabado, ou pré-determinado como muitos professores teimam em pontuar em seus colóquios.

Esse homem que não é professor, mas deixou marcas indeléveis sobre avaliação, deixava claro em nossas conversas, que também ele passava por processos semelhantes com seus avaliadores, o que vem corroborar com o exposto acima, de que avaliação e avaliador precisam ser avaliados. Em seus questionamentos nunca foi brando ou superficial, tampouco excessivo, pedindo mais do que pudesse obter do avaliado. Sugeria a revisão de alguns procedimentos, quando os resultados não se mostravam satisfatórios à realização do próprio avaliado. É preciso dizer que as questões a serem avaliadas por ele, não tinham um prazo determinado a ser cumprido, como um bimestre ou um ano letivo, por exemplo, tampouco faziam parte de um programa limitado de uma área de conhecimento, o que lhe permitia maior flexibilidade e respeito às condições, tempos e momentos do avaliado, mas guardadas as devidas proporções, a avaliação deste homem deixou as marcas de que nenhuma mudança profunda e significativa no “fazer” ou mesmo no “ser” se dá por acaso ou num momento único, ao contrário é resultado de um processo que demanda tempo para ver e rever, ver e rever, incessantemente, até que se atinja o objetivo proposto.

Esta forma de avaliar, sem condenar, sem machucar, sem depreciar, sem enfraquecer o avaliado, sentenciando-o como incapaz, improdutivo, mas ao contrário, fortalecendo-o ao reconhecer suas pequenas conquistas, só é possível a quem tiver por princípio que todos são iguais em dignidade pelo simples fato de serem pessoas e, portanto, merecem igual dedicação e cuidado. Podemos dizer também, que outro princípio é o de não abandonar qualquer pessoa a própria sorte, mas que devemos assumir um compromisso com aqueles que se encontram no nosso caminho, a exemplo da parábola da ovelha perdida (Mt. 18, 12-14), ou do Pequeno Príncipe e sua rosa (EXUPERY, 1981), ou ainda da “professorinha” e seus alunos no filme “Nenhum a Menos”.

Diante destes exemplos, não podemos deixar de lembrar que toda realidade é multifacetada, é complexa, e que nela coexistem fatores conflitantes. Queremos evidenciar aqui, a chance destes princípios – apesar de presentes no educador – não serem viáveis pelo simples fato do educando não querer fazer parte do caminho do educador. E isto é possível, e chama-se liberdade, pré-requisito do ato volitivo. Ora, e se a ovelha perdida não quisesse mesmo fazer parte do rebanho daquele pastor? Se a rosa não quisesse mais a companhia do pequeno príncipe? Se aquele aluno realmente não quisesse fazer parte do grupo da “professorinha”? O que estamos chamando a atenção é para o fato de que algumas pessoas simplesmente deixam de fazer parte do caminho do outro por opção e não apenas por condições desfavoráveis. Assim, temos que, nem sempre a avaliação não gera crescimento porque as condições em que se deu não foram adequadas, mas muitas vezes e simplesmente por uma questão volitiva do avaliado que escolheu não viver esse processo com aquele avaliador ou naquele momento histórico de sua vida, haja vista, alunos que num momento se apresentam rebeldes, negando-se a tudo que os professores propõem, e n’outro momento, na mesma escola, aceitam todos os desafios que lhe são propostos. Não podemos “demonizar” os professores ou a escola por todos os alunos que “fogem” do processo de aprendizagem proposto, como se o que, ou a forma do que propõem é que sempre estão inadequadas, há que se levar em conta a liberdade e a volição de cada sujeito.  Não estamos com isto, em hipótese alguma, avalizando professores que dificultam o processo, que não constroem condições favoráveis, ou mesmo a sociedade com seus sistemas excludentes, estamos sim trazendo à tona, a situação não rara, em que todas as condições pessoais, sociais, materiais e físicas foram criadas pela escola e professores e mesmo assim, a oportunidade não foi aproveitada pelo aluno. 

Encontramos na escola alunos que rodeados de dificuldades, esforçam-se por transpô-las e alunos que rodeados de facilidades, nada fazem. Na busca por uma explicação destes fatos é importante lembrar o dualismo ideológico que permeia o tema da avaliação escolar, no qual, ora o sistema ou o professor é que são injustos, ora o aluno é que não tem condições psicológicas, sociais, pedagógicas,  econômicas ou culturais de passar pelo processo da avaliação mas, pouco se pensa na escolha livre (não condicionada por dificuldades ou apesar delas) do aluno por não fazer alguma coisa, ou melhor, talvez esta última visão esteja presente na maior parte dos discursos dos professores como autodefesa e, a primeira visão esteja mais presente no discurso do aluno, da família dele ou da equipe técnico pedagógica como autodefesa ou racionalização e, obviamente, transferência da responsabilidade para o outro membro do processo. O que não vemos em ambos os casos é a consideração do ato volitivo, do ato livre do aluno diante da avaliação, seja para superar dificuldades ou aproveitar as facilidades. O que muitas vezes se busca é o que ou quem responsabilizar pela não promoção do aluno, localizando a causa ora no sistema escolar, ora no educador, ora nas condições do espaço-tempo do aluno ou do professor. Não vemos muito e/ou com objetividade, localizar a causa na real escolha do aluno.  Arriscamos ainda questionar: seria a avaliação excludente ou o aluno que se exclui? Talvez o aluno seja muito mais autor de sua vida do que nós educadores imaginamos. Talvez nossa atuação de educador e do sistema educacional como um todo, tenha menos papel determinante no crescimento do aluno do que pretendemos, mas, o que podemos observar no cotidiano da escola é que tanto a exclusão pode ser imposta ao aluno quanto pode ser deliberadamente provocada por ele mesmo ou ainda, as duas coisas.

Esperamos que as considerações apresentadas não tornem obscura a experiência relatada neste artigo, mas ao contrário, esclareçam que o processo de avaliação só se torna significativo se ao ser dada a oportunidade pelo educador, esta é aceita por ato livre e volitivo do aluno, pois, podemos ou não aproveitar oportunidades na dificuldade para o crescimento pessoal. O que demonstra a importância do processo educativo que se propõe justo, honesto, inclusivo e isento de omissões é garantir que sejam colocadas, pelo sistema escolar, pela equipe técnico-pedagógica, pelos educadores e pela família, todas as oportunidades à disposição de todos os alunos, para que aproveitem delas os que quiserem crescer naquele tempo, naquele lugar, com aquelas pessoas e com aquela avaliação.



Referências bibliográficas:

DEMO, P. Lógica e democracia da avaliação. Ensaio, Rio de Janeiro, jul./set. 1995, nº 8, vol. 3, p. 323-330.

FADIMAN, J. e FRAGER, R. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra, 1986, p. 26-28.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª ed., 1987, p. 77-82.

JOLIVET, R. Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 16ª ed., 1986, p.206-216.

SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1981, p.67-74.

REY, F. G. O social na psicologia e a psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 123-148.

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985, Mt. 18, 12-14, p.1873.

Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. 1990. Vol. 7, p. 3609.

Pequeno Dicionário Filosófico. São Paulo: Hemus, 1977, p.243.


Referência cinematográfica:

Nenhum a Menos, China (1999). De Zhang Yimou.

Dez.2005

Autoridade de um líder

Assumir um cargo é relativamente fácil se comparado com a construção da autoridade pessoal. Ser investido legitimamente de poder é mais fácil do que sua autoridade ser reconhecida.

Sirvo-me do livro “Comunidade, lugar do perdão e da festa”, escrito por um canadense – Jean Vanier - que fundou a “Arche” - comunidade para acolher deficientes mentais, em Trosly-Breuil – França, depois de se ter doutorado em Filosofia e ensinado na Universidade de Toronto. A comunidade cresceu e espalhou-se por vários países na Europa, Índia, América do Norte, América Central, África.


Capítulo V – Autoridade e outros dons


A autoridade é muito importante, pois o crescimento da comunidade depende, em grande parte, do modo como ela é exercida. O chefe numa comunidade não tem todas as luzes; sua função, pelo contrário, é ajudar cada membro a ser ele mesmo e a exercer seus dons próprios, para o bem de todos.
Falando de autoridade nestas páginas, não falo unicamente do “grande chefe” de uma comunidade, mas de cada um daqueles que tem autoridade sobre alguém.

1. Uma missão que vem de Deus
O responsável por uma comunidade, e qualquer responsável, recebeu uma missão que lhe foi confiada quer pela comunidade que o elegeu, quer pelo superior que o nomeou. Deve prestar-lhe contas.
Mas recebeu-a também de Deus. Não se pode assumir uma responsabilidade, em relação a outras pessoas, sem uma ajuda de Deus “pois, diz S. Paulo, só existe poder em Deus e toda a autoridade foi instituída por Deus” (Rm 13,1). Toda autoridade recebida de Deus, como missão, deve voltar para Deus, a quem é preciso prestar contas. Isto é a pequenez e grandeza da autoridade humana.
De fato a autoridade é para a liberdade e o crescimento das pessoas. É uma obra de amor.
Deus vem sempre em socorro daquele que tem autoridade se ele for humilde e procurar ser servo da verdade.

Reflexão:
- Minhas ações como "Líder" têm respeitado a liberdade e gerado crescimento dos meus liderados?


2. Ser servo
Há diferentes modos de exercer a autoridade e dar ordens: o do chefe militar, o do chefe de uma empresa e o do responsável por uma comunidade. O general tem em vista a vitória; o chefe de empresa, o lucro; e o responsável por uma comunidade, o crescimento das pessoas no amor e na verdade.
O responsável por uma comunidade tem uma dupla missão: deve conservar seus olhos, e os olhos da comunidade, fixos no essencial, nos objetivos fundamentais e mostrar sempre o caminho, para não deixar a comunidade perder-se em histórias, em coisas secundárias e acidentais.
Mas o responsável por uma comunidade tem também por missão criar uma atmosfera ou um ambiente de paz e de alegria entre os membros. Pela relação com cada um, pela confiança que lhes manifesta, leva cada um a ter confiança nos outros. O terreno propício para o crescimento humano é um meio ambiente sem tensões, feito de confiança mútua. Quando há rivalidades, ciúmes, suspeitas, bloqueios de uns em relação a outros, não pode haver comunidade, nem crescimento, nem testemunho de vida.
O essencial, para qualquer responsável, é que ele seja servo mais do que chefe. Quem assume uma responsabilidade porque quer provar alguma coisa, porque, por temperamento, tem tendência para dominar e mandar, porque precisa aparecer ou porque quer privilégio, será sempre um mal responsável, porque não procura ser, antes de tudo, ser servo.
Nunca se deve escolher um chefe por suas qualidades naturais, mas porque ele se mostrou, até então, alguém que coloca os interesses da comunidade acima dos interesses pessoais.
A primeira qualidade de um responsável é amar os membros de sua comunidade e sentir-se responsável pelo seu crescimento. Isto implica que ele carregue suas fraquezas. Os membros da comunidade sentem logo se o responsável os ama, tem confiança neles, ou se, pelo contrário, está lá para exercer um poder, ou impor sua visão, ou se é um fraco que só procura ser amado por eles.
Para o cristão, Jesus é o modelo de toda a autoridade. Ele, que lavou os pés dos discípulos, Ele, o Bom Pastor, que dá sua vida pelas ovelhas, ao contrário do mercenário que só age em seu interesse.
Um responsável deve sempre preocupar-se com as minorias na comunidade e com aqueles que não têm voz. Deve estar sempre à sua escuta e fazer-se seu intérprete diante da comunidade. É o defensor das pessoas, pois a pessoa, no seu ser profundo, não deve nunca ser sacrificada ao grupo. A comunidade é sempre para as pessoas, e não o contrário.

Uma reflexão:
- Como "Líder" eu crio um meio ambiente sem tensões, feito de confiança mútua? Eu dou vez e voz a todos os meus liderados ou só a alguns? Eu sei quem são os meus liderados, seus nomes, um pouquinho de sua história pessoal? Respeito sua história pessoal como a um mistério, a um tesouro, ou falo das suas coisas em qualquer lugar para qualquer um de qualquer jeito?


3. Dividir as responsabilidades
No fundo, a melhor autoridade é aquela que faz muito pouco, mas que lembra aos outros o essencial de sua função e da sua vida, que os chama para assumir responsabilidades, os sustenta, os confirma e os controla.
Um responsável não deve jamais cansar-se de dividir o trabalho com outros, mesmo se sentir que não fazem tão bem o trabalho quanto ele, ou diferente dele. É sempre mais fácil fazer as coisas do que ensinar os outros a fazê-las. Um responsável que cai na armadilha de querer fazer tudo ele mesmo corre o risco de se isolar.
Uma das qualidades essenciais de um responsável é saber escutar todos (e não só os amigos e os admiradores) compreender em que ponto está cada um, criar com eles laços verdadeiros, se possível laços calorosos. O mau responsável esconde-se atrás do prestígio, do poder, da palavra, da ordem: só escuta os amigos. Fala muito, mas preocupa-se pouco com saber como é que os outros recebem a sua palavra e, sobretudo, não procura conhecer suas necessidades profundas, suas aspirações, suas dificuldades, seus sofrimentos, e o apelo de Deus para eles.
Um responsável que não sabe escutar o contestário para captar o grão da verdade escondido entre as ervas daninhas do descontentamento, vive na insegurança.
Seria bom se permitisse aos membros de sua comunidade que se expressassem livremente diante de uma terceira pessoa, – um olho de fora – sobre seu modo de exercer a autoridade.
Um mau chefe só se preocupa com regulamentos e com a lei. Não procura saber como vão as pessoas. É fácil esconder sua incapacidade de compreender e de escutar atrás da imposição de uma lei. Impõe-se uma regra quando se tem medo das pessoas.

Uma reflexão:
- Como "Líder" eu sei ouvir e refletir sobre as críticas que geralmente surgem?


4. Não se esconder
O perigo para um responsável, é criar uma barreira entre ele e aqueles por quem é responsável. Dá a impressão de estar sempre ocupado. Este tipo de chefe tem medo e provoca medo. Está na insegurança. Um verdadeiro responsável é disponível.
É importante que um responsável se mostre tal qual é e partilhe suas dificuldades e suas fraquezas. Se as esconder, as pessoas correrão o risco de o ver como um modelo impossível de ser imitado. É importante que o vejam falível e humano, mas ao mesmo tempo, confiante e fazendo esforços para progredir.

Uma reflexão:
- Como "Líder" eu divido, às vezes, algumas histórias de superação minha para que eles vejam que outras pessoas passam por esse processo?


5. Uma relação pessoal
A verdadeira autoridade é aquela que trabalha por uma verdadeira justiça para todos, sobretudo para os mais pobres, os que não podem defender-se, que fazem de uma minoria oprimida. É uma autoridade pronta a dar a vida, que não aceita compromisso algum com o mal, com a mentira, com as forças de opressão que esmagam as pessoas, sobretudo os menores. E quando se trata de uma autoridade familiar ou comunitária, além de ter o sentido de justiça e de verdade, deve ser muito personalizada, feita de delicadeza, de escuta, de confiança e de perdão. Isto não exclui, evidentemente, momentos de firmeza.
Mas a autoridade é antes de tudo, uma referência, uma segurança, uma pessoa que confirma, sustenta, encoraja e guia.

Uma reflexão:
- Como "Líder" eu sei e costumo transitar entre a firmeza e a ternura, entre a firmeza e a delicadeza, entre a firmeza e a correção fraterna?
- Como "Líder" eu sei ouvir, mais do que falar? Eu sei encorajar, motivar, estimular a criatividade ou quero colocar “camisa de força” (no sentido de rigidez de modelo) na forma dos meus liderados fazerem todas as coisas?



Referência
VANIER, J. Comunidade, lugar do perdão e da festa. 3ªed. Sào Paulo: Paulinas, 1982, p.178-195.


sexta-feira, 10 de junho de 2011

Autopiedade poética, mas autopiedade! E quem não tem?

Maior Abandonado
Composição: Cazuza e Frejat
Eu tô perdido
Sem pai nem mãe
Bem na porta da tua casa
Eu tô pedindo
A tua mão
E um pouquinho do braço

Migalhas dormidas do teu pão
Raspas e restos
Me interessam
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam, me interessam

Eu tô pedindo
A tua mão
Me leve para qualquer lado
Só um pouquinho
De proteção
Ao maior abandonado

Teu corpo com amor ou não
Raspas e restos me interessam
Me ame como a um irmão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam

Migalhas dormidas do teu pão
Raspas e restos
Me interessam
Pequenas poções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam, me interessam

Estou pedindo
A tua mão
Me leve para qualquer lado
Só um pouquinho
De proteção
Ao maior abandonado





Fontes:

http://letras.terra.com.br/cazuza/919100/
http://www.youtube.com/watch?v=Td6OHpd9yg4

domingo, 5 de junho de 2011

Dia dos namorados

Aproxima-se o Dia dos Namorados. As vitrines tentam atender ao impetuoso desejo de dar algo ao outro além de si, ou simplesmente, no lugar de si. Vemos coisas básicas, convencionais e tentativas de inovação. Mudam apenas a cor, o formato, mas a idéia, a concepção das coisas parece não mudar muito.

Vemos canecas, almofadas, almofadões e almofadinhas, eletrônicos, lingeries, perfumes, promoções de preços, bichinhos de pelúcia e, surpreendentemente livros, ou apenas uma vitrine com coraçõezinhos vermelhos.

Tenha namorado, namorido ou namorante, qualquer dia é dia de dar.

Qualquer dia é dia...

De agradar. De agradecer. De retribuir. De tocar a sensibilidade. De fazer guardar. De fazer lembrar. De surpreender. De mesmices boas. De reforçar o sentimento bom. De aquecer a alma do outro. De alimentar a confiança. De garantir um bom momento. De fazer a festa que só dois são capazes de fazer. De planejar a perpetuação, não só da espécie, mas da sensação de amparo. De elevar a temperatura interna. De provocar o êxtase mútuo. De acalmar nos braços do outro. De vibrar com a presença. De desejar que seja eterno. De fazer tudo pelo outro. De fazer o outro se sentir bem. De ser gentil com o outro. De sacrificar-se pelo outro. De ver brilhar os olhos do outro. De ver o outro subir pelas paredes e acalmá-lo com jeitinho. De brindar o sucesso da dupla. De degustar o sabor do olhar, do toque, da voz, do movimento do outro. De curtir um silêncio coladinhos. De trocar coisas simples ou sofisticadas. De dar colo. De dar ombro. De dar as mãos. De relevar mediocridades. De superar dificuldades. De crescer junto. De fazer o outro se perceber grande e bom.

Essas coisas não têm em lojas, não se compram, não se vendem. Essas coisas se constroem.

Construir um relacionamento amoroso envolve engenharia, planejamento estrutural, escolha acertada de materiais e procedimentos, estudo do caso, aplicação de conhecimentos técnicos, cálculos precisos e inventividade.

Alguns relacionamentos pretendem-se mais sérios, elevados, profundos e, geralmente, isto quer dizer que não pretendem se sustentar apenas na atração, desejo e volúpias da carne. Outros pretendem-se mais ardentes, leves, concretos e, neles está implícito que o que vale é o momento presente, a sensação física, o que pouco exige.

Seja num caso ou outro, namorados, namoridos, namorantes, casais enfim, só se justificam pela troca de intimidade física, sem ela trata-se de relação fraternal ou profissional apenas.

E como intimidade física é ainda tratada, paradoxalmente, de forma escrachada ou com tabus, devo dizer que a intimidade precisa ser vista como ela é, em sua natureza, em sua realeza, a intimidade é bela! A intimidade física entre duas pessoas tem uma função mística de promover o encontro do homem com Deus, da criatura com o criador, e é só por isso que a sensação é de tanta plenitude. A sensação de êxtase, de prazer não é só descarga de energia física contida, convulsionada, é mais que isso, é o êxtase do encontro com o divino. Isto me lembra a sabedoria oriental que diz numa saudação: "Deus em mim saúda Deus em você!" Estou lendo sobre isto numa referência respeitável porque alicerçada em argumentos científicos e teológicos, mas isto se lê devagar, numa fonte dessas se bebe aos poucos, e se volta muitas vezes até que se tenha compreendido muito e então trarei um pouco desse entendimento para cá, por ora, fiquemos com isto, a intimidade entre um homem e uma mulher é bela, é mística, é boa.

A intimidade entre um homem e uma mulher sempre foi provocada de diversas formas e nos últimos dias me dei conta, que uma das provocações existentes é a literatura erótica. Eu nunca fui de procurar literatura com erotismo, até porque é bem difícil encontrar boa obra, com linguagem mais insinuante do que direta e escancarada. Mas andei procurando há dois dias e encontrei uma indicação num site da internet, isto me levou às livrarias da cidade, uma delas com uma vitrine preparada para o Dia dos Namorados onde não encontrei a obra indicada, mas encontrei outras. Visitei mais uma livraria onde encontrei a obra procurada e outras também, mas não muitas, ao contrário do que se podia imaginar, no entanto, nessas outras opções a linguagem e a forma do texto apresenta-se muito aquém do que merece o tema, exceto na obra que fui procurar, já estou lendo e estou admirada, mas ainda não li toda, falarei dela aqui no blog também com certeza e, se tivesse um namorado, um namorido ou um namorante, provavelmente esse seria meu presente no Dia dos Namorados.

Há que se dar beleza, riqueza, grandeza a quem se quer tão bem, a quem é tão atrativo e desejável, a quem a natureza e Deus uniram, mesmo que por pouco tempo quiçá. Quem cruza o meu caminho merece o melhor de mim. E se sei distinguir o melhor das coisas, devo dar o melhor das coisas, inclusive a melhor literatura. Mesmo sem saber o último terço do conteúdo da obra, posso indicá-la já pela forma provocante não só da libido, mas do intelecto, mesmo encontrando lá algumas expressões àsperas e em si de baixo calão, mas suavizadas pela solicitação exaustiva da atenção ao contexto, trata-se do livro: "Um copo de cólera" de Raduan Nassar, um paulista apesar do nome. Não se arrependerão da beleza que há nas fortes linhas impressas.

Que todos os intimamente ligados aproveitem bem as horas e não só os dias, pra se alimentarem de pão, de graça, de afeto e de erupções emocionais, por que não? Mas também pra se nutrirem, na calmaria dos intervalos das impetuosidades da química que corre nas veias, com a certeza de ser amado pelo outro, por um tempo mesmo que curto, na quantidade e forma que o outro é capaz e tem condições.
Guardar o que é bom é o segredo de ser feliz nos relacionamentos, ou mesmo depois deles.