segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Amanhã virá a síntese cantada

A lógica capitalista é poderosa, perceptível principalmente quando ultrapassa os seus limites, os limites da relação econômica, da apropriação de bens e serviços para atingir sorrateiramente as relações humanas.
É normal que numa loja você seja abordado pelo vendedor, tecnicamente bem preparado, oferecendo-lhe através de uma pergunta inocente um paraíso ao alcance de suas mãos, mais precisamente do seu bolso, e você, um consumidor, tecnicamente bem ou mal preparado, sente-se tentado, persuadido a adquirir aquele quinhão do céu. Você já viu algum vendedor, bem ou mal preparado abordar alguém assim: "Você quer me dar R$209,00? Em troca lhe dou este livro maravilhoso."? Nunca. Com certeza. Porque a técnica do vendedor baseia-se no uso da persuasão e não do convencimento. Lembremos, persuasão apela para a emoção e sensação, já convencimento apela para a razão. Traduzindo, é o uso legitimado da manipulação, do controle, do subterfúgio, do maquiavelismo - os fins justificam os meios. Em vez disso você provavelmente veria uma abordagem maquiada, sutil, tal como "Você gosta desta área de leitura? Este livro traz as últimas descobertas da ciência, perfeito para sua atualização num mercado tão competitivo profissionalmente, onde quem sabe mais e primeiro garante seu espaço."
Perceba, que a necessidade é do vendedor - vender, atingir sua quota, conquistar cliente. Porém, ele inverte a posição de necessitado para o cliente. O orgulho faz muitas vezes e muitas pessoas usarem esse jogo no dia-a-dia. Para camuflar uma necessidade sua, uma fragilidade sua, montam jogadas para que o que lhe falta seja suprido pelo outro de forma que este sinta-se devendo-lhe uma paga. Essas pessoas são por demais orgulhosas para serem diretas e pedirem um favor quando se relacionam extraprofissionalmente. Dizer até que essas pessoas fazem uso da lógica capitalista nas relações pessoais quase que os inocenta, parece até que são "pobres inconscientes" da internalização que fizeram da lógica mercantilista. Não, não, não. Não os inocento. Só faz uso inescrupolosamente deste jogo os pouco conscientes de sua humanidade, os que não admitem "precisar"de alguém ou alguma coisa, os fracos, os covardes. Seria tão mais simples, tão mais honesto, tão mais digno, tão mais humanizador das relações, tão mais engrandecedor de ambos envolvidos - o que pede e o que "livremente" "decide" dar. Mas pessoas pouco amadurecidas preferem deixar o gosto amargo de uma relação gananciosa, utilitarista, do que construir laços de afeto, por si, gratuitos. E assim que o outro percebe o jogo e se afasta, o "vendedor" parte para outro cliente em potencial, mas seu jogo ele não abandona, afinal o que significava aquele "cliente" em sua vida?
É até compreensível que nas relações de mercado, numa política liberal capitalista, isto seja tido como normal, correto e desejável. Afinal, poucos se propõem a questionar a realidade ou a buscar explicações das intrincadas redes social, econômica, política e cultural que se lhes apresenta. Aquele que busca um pouquinho sobrepairar ao seu contexto, sobrevoar o seu entorno, escalar um mirante, verá novos sentidos, novas direções, forças motrizes, limites, amarrações que antes não via. É preciso bater só um pouquinho as suas asas.
Agora, transferir a lógica capitalista, do "toma lá 1 e dá cá 2" para as relações interpessoais significa que um considera o outro um consumidor mal preparado na pior das hipóteses, também que o seu serviço jamais poderá ser gratuito, generoso, sempre terá um preço para o outro, além do que o seu valor não está em quem é, mas no que consegue obter de volta, em outras palavras, a pessoa que se comporta como vendedor nas relações interpessoais não tem um autoconceito muito bom, não sabe seu valor como pessoa única, particular, digna, mas apenas se dá valor "quando"e "quanto" troca, barganha, negocia o que "faz" pelo que "recebe". É até engraçado ver o corpo do "vendedor" falar quando consegue manipular, persuadir o outro a fazer o que ele queria sem ter que pedir, o peito estufa, o sorriso fica largo, muda de assunto tirando o foco da atenção da barganha.
Hoje um vendedor de "gentileza", orgulhoso demais pra admitir sua solidão, orgulhoso demais pra admitir sua necessidade e pedir um favor, tal qual um contratante de cortador de cana, ofereceu-me uma "agrado", aparentemnente despretencioso, mas parte de uma barganha amplamente arquitetada, com mais de um dia de antecedência inclusive, fazendo ontem o que nunca fez, senão mesmo por interesse escuso em outros momentos - uma ligação, uma pergunta preocupada: "Como você está? Melhorou?" Uma semana antes, num "inocente" e "aparentemente" preocupado relato lançou o argumento moral para persuadir-me a corresponder ao "seu" interesse: "Tem que visitar, não é só na hora que precisa". O discurso parece nobre, para quem não sobrevoa, para quem não conhece a miúde, para quem não é um consumidor preparado. O vendedor, acostumado a trocar bens por quinhões, ofereceu sua mesa ao "cortador de cana" pra depois, endividado, sentir-se obrigado a pagá-lo trabalhando quanto e quando dele exigisse. Vivi 4 anos num trabalho "cortando conflitos" onde alguns dias ou horas de folga me eram impostos e debitados num banco de horas para que me sentisse obrigada a trabalhar em qualquer horário e atividade como paga. Conheço bem essa lógica, submetí-me a ela como todo proletariado, mas com a diferença de ter consciência das intrincadas tramas do mercado de trabalho, nesse caso, ainda escravagista, apesar das leis neste país e da relativa fiscalização das autoridades legais. Conincidência ou não o vendedor de hoje viveu muitos anos da sua infância em instituição como essa em que trabalhei por 4 anos. Aprendeu a lição muito bem - do controle, do subjugo, da dominação e desaprendeu a gratuidade, a "pieguice" do amor.
Engraçado que pouco antes de chegar na casa do vendedor eu ouvia no som do carro "Dia especial" do grupo Pouca Vogal que simplifica o exposto, que traduz o avesso desta postagem, que me faz pensar que não sou única a questionar a lógica capitalista nas relações interpessoais e tampouco é um questionamento novo.
Pra ouvir e acompanhar:

Dia Especial
(Pouca Vogal)
Se alguém já te deu a mão
E não pediu mais nada em troca
Pense bem
Pois é um dia especial
Eu sei que não é sempre que a gente encontra
Alguém que faça bem e nos leve desse temporal
O amor é maior que tudo
Do que todos até a dor se vai
Quando o olhar é natural
Sonhei que as pessoas eram boas
Em um mundo de amor
E acordei nesse mundo marginal
Mas te vejo e sinto
O brilho desse olhar que me acalma
Me traz força pra encarar tudo
Mas te vejo e sinto
O brilho desse olhar que me acalma
Me traz força pra encarar tudo
O amor é maior que tudo, do que todos, até a dor
Se vai quando o olhar é natural
Sonhei que as pessoas eram boas
Em um mundo de amor
E acordei na terceira guerra mundial
Mas te vejo e sinto
O brilho desse olhar que me acalma
Me traz força pra encarar tudo (4x)
Composição: Duca Leindecker / Cidadão Quem




Fontes:
http://letras.terra.com.br/pouca-vogal/1463802/
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=y18GLZManTM#!

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