domingo, 24 de novembro de 2013

E assim as coisas passam

Anunciei à noite.
Pela manhã duas ligações.
Uma regateando o já tão humilhado bem da humanidade em extinção e por isso as pessoas sequer sabem hoje seus valores, não em moeda, mas em vantagens, benefícios, grandeza, dureza que nem o cupim tenta vencer. À minha negativa a voz regateante tremulou, entendeu que estava sendo abusivo e ingênuo, que não se tratava de uma venda em desespero. Quinze minutos depois o regateante liga em desespero querendo ainda o bem.
Na sociedade do descarte, tratam porcelana como se fosse copo plástico, tratam linho como se fosse malha, tratam imbuia como se fosse MDF. Aliás o que é mesmo MDF? Massa de farelo de madeira qualquer com cola? E imbuia alguém sabe? Para os novinhos... uma árvore frondosa cuja madeira é extremamente resistente, moldável a entalhes em tonalidades de marrom claro e escuro, com veios lindos.
E assim as coisas vão passando.
História é palavra tão usada, mas tão pouco introjetada em seu conceito, sua importância, tão pouco percebida sua presença fluída e dinâmica.
Minhas histórias estão indo pouco a pouco para o esquecimento total.
Mal de Alzeimer?
Não. Desconsideração mesmo.
Para as pessoas à minha volta é como se nada que se perde fosse importante, tivesse valor, então, não há que se "apegar".
Usam levianamente o termo "desapegar" no lugar de "não dar valor", "não significar".
Quando me dizem "desapegue" estão dizendo implicitamente "não aguento ver você penalizada com essa perda", "não sei o que fazer para ajudar", "perder é natural", "perder é bom", "eu já perdi e chegou sua vez".
Vejo nos seus olhos uma resignação que não me cabe, um desencanto que beira a motivação de um suicídio, um espírito de vingança que se compraz com a perda alheia, um falso encorajamento verbalizado mas negado pelo seu olhar vazio e perdido nas suas próprias lembranças.
E é com este olhar que querem me convencer a não me ressentir com as perdas.
E não estou falando das perdas de bens apenas, é muito além deles, é muito anterior a eles, é a perda de minha energia, roubada, usurpada, como se numa transfusão de sangue os meus glóbulos vermelhos não mais se reproduzissem.
Talvez por isso meus esmaltes vermelhos, tentativa simbólica de recuperar a cor, a vida.
Outro dia, outro telefonema, outra interessada, uma voz alegre, eufórica, ansiosa, esperançosa, assertiva querendo aquelas graciosidades de quatro pés. Era ela! Ela tinha na voz a respeitabilidade, era digna daquelas peças. Ela já havia me pago com o brilho da voz ao telefone e nem sabia.
E, justamente, quando eu perdia inclusive o vermelho das unhas que esfregavam, raspavam, lavavam, recebi uma nova ligação dela, que só podia ser jovenzinha e estar ouvindo passarinhos cantar.
Extremamente delicada, tentando conter seu entusiasmo, me pergunta se estou em casa, diz que demorou mas está próxima, e pergunta, finalmente, se pode vir buscar o objeto do seu encanto.
Eu só queria conhecer a dona da voz.
Os olhos eram tão vivazes quanto o som que ouvi no motorola.
O motivo da altivez misturada com leveza veio junto, ele devia ser um bom marido.
E a imbuia seguiu seu caminho, desejei a dona da voz, embora não fosse necessário, que o que me serviu por 23 anos a servisse e a fizesse feliz, e que isso ficaria de herança para seus filhos.
Ela ria, agradecia, respeitosamente carregava.
Entendi que vale a pena as coisas passarem quando passam assim, para alguém que sabe o que está recebendo. Só isso resolve em nós aquela equação difícil. O mais dela era maior que meu menos, então o resultado acaba sendo positivo.
E assim caminha a humanidade.


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