AVALIAÇÃO: UMA PRERROGATIVA DO FAZER CRESCER
SOB A ÉGIDE DA LIBERDADE DO QUERER
Ms. M. R. H.
Há mais de quinze anos, eu estava numa sala diante de um homem com autoridade, não aquela outorgada por outrem, por um diploma ou uma posição, isso tudo até existia, mas a autoridade vinha dele, o resto era moldura, adorno, detalhe, nada que valesse mais que a “obra” – a sua pessoa.
Professorava sem ser professor e ainda o faz, com a surpreendente atitude de ouvir mais do que falar, e quando fala, mais pergunta suscitando as respostas escondidas em nós mesmos do que respondendo nossas perguntas – isto nos faz lembrar com certeza da “maiêutica” de Sócrates, do “ensinar a pescar” de Jesus, da “psicanálise” de Freud, e mais recentemente, da dialogicidade de Paulo Freire, assim como nos remete à etimologia da palavra educação, que vem do latim “educere” – tirar de dentro.
Não temer o que vem do outro, o que o outro é, convidar e permitir que o outro se manifeste sem se colocar indiferente a ele, é caminhar junto, é reconhecer a existência do outro e, implicitamente, comprometer-se com o caminho do outro, com seu crescimento.
É senso comum que os professores desejam e agem para gerar o crescimento de seus alunos, mas sabemos o quanto isto está carregado de eufemismo, pois, nem todos e, tampouco, por todo o tempo, dão conta desta tão pretensiosa missão. Além disto, “fazer crescer” para o professor, pode muitas vezes significar unicamente tornar o aluno uma cópia aproximada de si mesmo, sem considerar a riqueza das diferenças e as possibilidades de crescimento mútuo.
Estamos falando de crescer e fazer crescer, o que inclui a prerrogativa da avaliação, pois, só podemos decidir ir adiante se – sabendo onde queremos ir, quais caminhos nos permitem chegar e, como podemos fazer esse caminho – verificamos ao longo do percurso o que nos ajuda e o que nos atrapalha.
Se o professor desejar mesmo fazer crescer seus alunos, utilizar-se-á da avaliação como meio, mas que tenha antes consciência de que a avaliação deve ser passível, ela mesma, de avaliação, além do que, ela deve acontecer internamente e externamente, é o que DEMO (1995) vai nomear de “lógica e democracia da avaliação”.
Por “lógica da avaliação” entende-se que, a exemplo da ciência moderna que se constrói e constrói conhecimento por meio de questionamento sistemático, crítico e criativo de si e do objeto de estudo, com vistas à intervenção, também a avaliação se constrói e produz crescimento se assim o fizer, ou seja, sujeitar-se a questionamentos, e aqui é preciso acrescentar a figura do avaliador, no caso da escola, o professor, que antes de avaliar o aluno, deve não só avaliar-se, mas deixar-se ser avaliado por outrem.
Por “democracia da avaliação” compreende-se que, a avaliação precisa ser educativa, motivadora, desafiadora e não instrumento de exclusão, de comprometimento da auto-estima e geradora de fracasso escolar. Suas características são: transparência de critérios, ou seja, os avaliados precisam saber o quê, como e quando serão avaliados; a possibilidade da avaliação ser refeita, caso os resultados estejam aquém do esperado; servir de elo entre avaliador e avaliado, aproximando-os pelo diálogo sobre o momento em questão; propiciar ao avaliado a comparação consigo mesmo, a autopercepção do que é capaz até o momento; guiar-se pela ética do mérito, a qual evidencia a competência conquistada e não apenas preferências e privilégios do avaliador para com o avaliado.
Com estes conceitos, voltemos ao personagem inicial, o homem que professorava sem ser professor, que fazia crescer e que para isso avaliava. Cabe ressaltar que sua avaliação se dava sobre “ações” do sujeito e não sobre o “ser” do sujeito, o que é muito diferente, pois, quem se acha competente para julgar o “ser” de outrem? O “fazer” já é uma realidade bastante complexa que envolve a subjetividade individual e a subjetividade social do sujeito da ação, no espaço-tempo em que se encontra, quem dirá o “ser”, que nunca está pronto e acabado, ou pré-determinado como muitos professores teimam em pontuar em seus colóquios.
Esse homem que não é professor, mas deixou marcas indeléveis sobre avaliação, deixava claro em nossas conversas, que também ele passava por processos semelhantes com seus avaliadores, o que vem corroborar com o exposto acima, de que avaliação e avaliador precisam ser avaliados. Em seus questionamentos nunca foi brando ou superficial, tampouco excessivo, pedindo mais do que pudesse obter do avaliado. Sugeria a revisão de alguns procedimentos, quando os resultados não se mostravam satisfatórios à realização do próprio avaliado. É preciso dizer que as questões a serem avaliadas por ele, não tinham um prazo determinado a ser cumprido, como um bimestre ou um ano letivo, por exemplo, tampouco faziam parte de um programa limitado de uma área de conhecimento, o que lhe permitia maior flexibilidade e respeito às condições, tempos e momentos do avaliado, mas guardadas as devidas proporções, a avaliação deste homem deixou as marcas de que nenhuma mudança profunda e significativa no “fazer” ou mesmo no “ser” se dá por acaso ou num momento único, ao contrário é resultado de um processo que demanda tempo para ver e rever, ver e rever, incessantemente, até que se atinja o objetivo proposto.
Esta forma de avaliar, sem condenar, sem machucar, sem depreciar, sem enfraquecer o avaliado, sentenciando-o como incapaz, improdutivo, mas ao contrário, fortalecendo-o ao reconhecer suas pequenas conquistas, só é possível a quem tiver por princípio que todos são iguais em dignidade pelo simples fato de serem pessoas e, portanto, merecem igual dedicação e cuidado. Podemos dizer também, que outro princípio é o de não abandonar qualquer pessoa a própria sorte, mas que devemos assumir um compromisso com aqueles que se encontram no nosso caminho, a exemplo da parábola da ovelha perdida (Mt. 18, 12-14), ou do Pequeno Príncipe e sua rosa (EXUPERY, 1981), ou ainda da “professorinha” e seus alunos no filme “Nenhum a Menos”.
Diante destes exemplos, não podemos deixar de lembrar que toda realidade é multifacetada, é complexa, e que nela coexistem fatores conflitantes. Queremos evidenciar aqui, a chance destes princípios – apesar de presentes no educador – não serem viáveis pelo simples fato do educando não querer fazer parte do caminho do educador. E isto é possível, e chama-se liberdade, pré-requisito do ato volitivo. Ora, e se a ovelha perdida não quisesse mesmo fazer parte do rebanho daquele pastor? Se a rosa não quisesse mais a companhia do pequeno príncipe? Se aquele aluno realmente não quisesse fazer parte do grupo da “professorinha”? O que estamos chamando a atenção é para o fato de que algumas pessoas simplesmente deixam de fazer parte do caminho do outro por opção e não apenas por condições desfavoráveis. Assim, temos que, nem sempre a avaliação não gera crescimento porque as condições em que se deu não foram adequadas, mas muitas vezes e simplesmente por uma questão volitiva do avaliado que escolheu não viver esse processo com aquele avaliador ou naquele momento histórico de sua vida, haja vista, alunos que num momento se apresentam rebeldes, negando-se a tudo que os professores propõem, e n’outro momento, na mesma escola, aceitam todos os desafios que lhe são propostos. Não podemos “demonizar” os professores ou a escola por todos os alunos que “fogem” do processo de aprendizagem proposto, como se o que, ou a forma do que propõem é que sempre estão inadequadas, há que se levar em conta a liberdade e a volição de cada sujeito. Não estamos com isto, em hipótese alguma, avalizando professores que dificultam o processo, que não constroem condições favoráveis, ou mesmo a sociedade com seus sistemas excludentes, estamos sim trazendo à tona, a situação não rara, em que todas as condições pessoais, sociais, materiais e físicas foram criadas pela escola e professores e mesmo assim, a oportunidade não foi aproveitada pelo aluno.
Encontramos na escola alunos que rodeados de dificuldades, esforçam-se por transpô-las e alunos que rodeados de facilidades, nada fazem. Na busca por uma explicação destes fatos é importante lembrar o dualismo ideológico que permeia o tema da avaliação escolar, no qual, ora o sistema ou o professor é que são injustos, ora o aluno é que não tem condições psicológicas, sociais, pedagógicas, econômicas ou culturais de passar pelo processo da avaliação mas, pouco se pensa na escolha livre (não condicionada por dificuldades ou apesar delas) do aluno por não fazer alguma coisa, ou melhor, talvez esta última visão esteja presente na maior parte dos discursos dos professores como autodefesa e, a primeira visão esteja mais presente no discurso do aluno, da família dele ou da equipe técnico pedagógica como autodefesa ou racionalização e, obviamente, transferência da responsabilidade para o outro membro do processo. O que não vemos em ambos os casos é a consideração do ato volitivo, do ato livre do aluno diante da avaliação, seja para superar dificuldades ou aproveitar as facilidades. O que muitas vezes se busca é o que ou quem responsabilizar pela não promoção do aluno, localizando a causa ora no sistema escolar, ora no educador, ora nas condições do espaço-tempo do aluno ou do professor. Não vemos muito e/ou com objetividade, localizar a causa na real escolha do aluno. Arriscamos ainda questionar: seria a avaliação excludente ou o aluno que se exclui? Talvez o aluno seja muito mais autor de sua vida do que nós educadores imaginamos. Talvez nossa atuação de educador e do sistema educacional como um todo, tenha menos papel determinante no crescimento do aluno do que pretendemos, mas, o que podemos observar no cotidiano da escola é que tanto a exclusão pode ser imposta ao aluno quanto pode ser deliberadamente provocada por ele mesmo ou ainda, as duas coisas.
Esperamos que as considerações apresentadas não tornem obscura a experiência relatada neste artigo, mas ao contrário, esclareçam que o processo de avaliação só se torna significativo se ao ser dada a oportunidade pelo educador, esta é aceita por ato livre e volitivo do aluno, pois, podemos ou não aproveitar oportunidades na dificuldade para o crescimento pessoal. O que demonstra a importância do processo educativo que se propõe justo, honesto, inclusivo e isento de omissões é garantir que sejam colocadas, pelo sistema escolar, pela equipe técnico-pedagógica, pelos educadores e pela família, todas as oportunidades à disposição de todos os alunos, para que aproveitem delas os que quiserem crescer naquele tempo, naquele lugar, com aquelas pessoas e com aquela avaliação.
Referências bibliográficas:
DEMO, P. Lógica e democracia da avaliação. Ensaio, Rio de Janeiro, jul./set. 1995, nº 8, vol. 3, p. 323-330.
FADIMAN, J. e FRAGER, R. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra, 1986, p. 26-28.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª ed., 1987, p. 77-82.
JOLIVET, R. Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 16ª ed., 1986, p.206-216.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1981, p.67-74.
REY, F. G. O social na psicologia e a psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 123-148.
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985, Mt. 18, 12-14, p.1873.
Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. 1990. Vol. 7, p. 3609.
Pequeno Dicionário Filosófico. São Paulo: Hemus, 1977, p.243.
Referência cinematográfica:
Nenhum a Menos, China (1999). De Zhang Yimou.
Dez.2005
Texto interessantíssimo. Dando a este uma forma de artigo, vc pode, e deve, publicar.
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